terça-feira, 30 de outubro de 2012

Mães usuárias de crack se tornam um novo problema de saúde pública no Brasil

O doutor Dráuzio Varella mostra a vida de jovens dependentes que engravidam e, mesmo assim, continuam se drogando. Elas acabam perdendo a guarda dos filhos.




Samara tem 21 anos e não é uma gestante qualquer. Ela usou crack durante as 20 primeiras semanas de gestação, desde a fase mais inicial da formação do feto.

Letícia, de 18 anos, acabou de ter seu primeiro filho. E ainda na mesa do parto precisa dar uma informação que pode fazer toda a diferença para a vida dela e da criança: ela fumava maconha, crack e usava cocaína.

A produtora do Fantástico conheceu Samara na clínica em que ela, já grávida, estava recebendo tratamento contra a dependência do crack. “Agora, vai fazer quatro meses que estou aqui. Se eu não tomar vergonha na cara... Eu quero parar de usar”, diz Samara.

Samara perdeu provisoriamente a guarda da primeira filha. Por causa do crack, ela tem medo que o mesmo aconteça com o bebê que vai nascer. “Eu tenho medo de não conseguir, mas eu vou conseguir”, acredita.

As histórias das mães do crack se repetem. “Uma vez que eu cheguei a fumar com o meu pai 60 pedras de crack”, contou uma menor de idade.

“Eu não conheci a minha mãe verdadeira. Não sei muito os motivos dela, mas ela não teve condições de me criar”, diz Fabíola Fernandes da Silva, de 23 anos.

“Fui para São José do Rio Pardo, com uma colega minha, fazer programa. Aí passou um tempo, e outra colega minha ofereceu crack para mim. Foi quando eu comecei a viciar. Passei a fazer mais programa para usar o crack”, conta Samara.

“Apanhei demais, porque as mulheres mais velhas me exploravam muito. Eu tinha que me prostituir para poder pegar dinheiro e pegar a droga para elas”, conta Fabíola.

“Eu tinha vergonha até de chegar perto da minha filha. Estava muito magra, muito acabada”, contou Sirlene Rodrigues, de 28 anos.

A combinação de desamparo, dependência química e violência leva facilmente à gravidez acontecimento que não muda o rumo desta história triste.

“O que caracteriza a dependência é a incapacidade de ter um controle. Então, é como se ela ficasse à mercê de uma força maior do que a própria vontade dela. É um sofrimento muito grande. Não são mães desnaturadas, não são mães que não se preocupam com isso, mas são mães que estão em um nível de sofrimento impensável e que não conseguem sair disso. É por isso que a gente precisa ajudar essas mães e não condená-las”, explica Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra da Unifesp.

“Nós temos casos muito tristes de moças que vão para o hospital sem saberem que estão dando à luz”, diz Dora Martins, juíza da Vara Central da Infância de SP.


É ridículo imaginarmos que as adolescentes das cracolândias tenham discernimento para procurar os serviços de saúde atrás dos anticoncepcionais. É o anticoncepcional que tem que chegar até elas. Existem injeções de efeito prolongado que são ideais para essas situações.

O psiquiatra Ronaldo Laranjeiras, da Unifesp, vê esses atendimentos como uma grande prioridade. “Para uma menina chegar a estar grávida e continuar usando crack é porque que ela tem uma vulnerabilidade muito grande. Então, você tem que criar um tratamento muito mais estruturado, tem que oferecer um ambiente onde ela fique protegida. E depois do parto ela tem que ter uma continuidade no sentido de protegê-la socialmente”, afirma.

A Samara, Fabíola e uma das menores de idade que você conheceu nesta reportagem ficaram internadas no interior de São Paulo, no Instituto Bairral.

A Fabíola foi por vontade própria. A Samara e a menor, por ordem judicial a pedido da família.

Há cinco anos, uma maternidade pública do estado de São Paulo teve apenas um caso de parturiente usuária de crack. Agora, a situação é outra. “Até agosto de 2012, atendemos 40 casos”, conta Andrea Fernandes, médica neonatologista.

Muitas vezes, a condição social, emocional e econômica da mãe e da família obrigam a Justiça a destituir o chamado poder familiar, que é entregar o bebê ou a criança a um parente da mãe ou mesmo para adoção.

Na Vara Central da Infância de São Paulo, houve 56 ações de destituição em 2010. Este ano, o número dobrou: 111 casos até o mês de outubro. “Significativamente, a maioria é de mães usuárias de crack”, diz uma juíza.

É comum candidatos à adoção terem medo dos problemas que a criança tem ou vai ter quando a mãe biológica é dependente. Os alimentos e o oxigênio são transportados pelo sangue da gestante até a placenta. Sem ela, o feto não pode se nutrir, nem respirar. A placenta de uma dependente de crack fica enrugada, mais fraca, com menor capacidade de defender o feto da entrada de um vírus, por exemplo. E o sangue da mãe, que carrega tudo que o feto precisa, atravessa a placenta em menor quantidade.

“O bebê corre bastante risco de dano neurológico. O tremor é claramente uma manifestação de abstinência”, alerta o infectologista da Unifesp Adauto Castelo Filho. A criança pode nascer sentindo a falta do crack no organismo.

“As pessoas que vão adotar são chamadas no Fórum. Elas preenchem um questionário bastante minucioso, e nesse momento vão dizer qual o perfil da criança que eles querem. O casal, o pretendente ou a pretendente, é informado nesse momento dessas questões das crianças filhos de drogadictos”, diz a juíza.

“Eu acho que, quando você tem esclarecimento, fica mais fácil de você aceitar algumas coisas. Quando entramos na fila de adoção, tínhamos algumas restrições”, diz a mãe adotiva Eliane Canale.

“Eu sou chorão, é difícil até falar sobre isso. Foi algo muito especial. Eu sonhei muito com isso, muito. Esse dia foi muito especial. Foi nesse momento que a gente falou pra ele que seríamos os pais dele, e ele falou: ‘você é o meu papai?'. 'Sim, filho, eu sou o seu papai agora”, contou o pai adotivo Alexandre Marcelino Coelho.

Aos 23 anos, Fabíola está grávida do quinto filho. Os outros quatro foram adotados. Quando nasceu a filha mais velha, ela tinha 14 anos. “Fiquei sabendo que o juiz deu para uma família bem de vida, que não tinha filho nenhum, que não podia ter filho”, diz ela.

“Prefiro mil vezes as minhas duas filhas do que a droga. Então, não vou deixar ninguém tirar de mim, não”, afirma Samara.

A primeira filha de Samara nasceu no início deste ano. Por ordem judicial, ela está com a mãe da Samara, com quem ela nunca se deu bem. “Uma vez ela me fechou dentro de casa, escondeu a chave, pegou a faca, colocou no meu pescoço e falou que se eu levantasse, ela enfiava a faca em mim. Eu fiquei com medo de morrer”, conta a mãe de Samara.

Samara foi criada pela avó materna. “A mãe dela sempre vem na minha casa quando ela está aqui, só que as duas não combinam. Elas brigam muito porque a mãe dela não ajuda ela com nada. Eu amo a Samara igual amo meus filhos mesmo”, diz avó Samara.

No instituto, Samara, ainda grávida da segunda filha, recebe emocionada a visita da avó e da cunhada. A situação de Samara não é fácil. Dependente do crack, ela tem que provar a si mesma e à Justiça que pode criar as crianças. A situação da primeira filha é provisória. E o que vai acontecer com a segunda?

“Um quarto está esperando a Samara chegar com o bebê. Se ela tiver a neném junto com ela, pode ser a salvação dela”, acredita a avó.

Isso quem vai dizer é a Justiça. Uma nova vida pode não ser uma vida nova. A Samara dá à luz em um hospital de Itapira, interior de São Paulo.

Na Maternidade Estadual Leonor Mendes Barros, nesse mesmo dia, nasce o filho da Letícia. “Não consigo pensar em nada, só no bebê. E quero descansar”, diz Letícia.

Depois do parto, que correu bem, Letícia descansou por uma hora. E aí o destino do bebê começou a ser decidido. Por ser dependente química, Letícia é entrevistada por uma assistente social. E sai triste.

“Ela explicou que eu iria fazer um acompanhamento com a psicóloga. Fiquei apreensiva quando ela disse que teria que passar a guarda para algum familiar meu. Não gostei, não. Mas é o melhor, não é? Vai ter que ser analisado se é o melhor pra ele. Só isso”, afirma Letícia. E foi o que aconteceu. Na quinta-feira (25), a Justiça decidiu que uma tia da Letícia vai ficar um ano com a criança, sempre acompanhada pela Vara da Infância, até uma nova avaliação. Letícia já começou a tratar a dependência química em uma instituição pública.

Samara saiu do hospital há pouco mais de uma semana. Como ela queria, foi para a casa da avó. “Vou ficar acho que até eu arrumar uma comunidade terapêutica para ficar. Aí eu deixo minha filha com a minha avó”, diz Samara.

O futuro desses bebês ainda está em aberto. A Justiça pode até decidir pela adoção.

“A gente tem que pensar não dez vezes, mas sim mil vezes antes de experimentar a droga, ainda mais o crack. Experimentou o crack, acabou”, alerta Samara.

Um comentário:

  1. É interessante a abordagem do assunto, já que cada vez mais as drogas vem se tornando um problema. No caso, acho que as mães devem ser tratadas enquanto os filhos ficam sob guarda de um responsável legal, para que depois de "curadas" as mães possam ter a opção de criar ou não a criança. Se nenhum familiar se responsabilizar pela criança, ela seria encaminhada para um orfanato para a adoção.

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