sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A China não escapa da crise


MÁRIO SOARES
O TEMPO E A MEMÓRIA

A China não escapa da crise

por MÁRIO SOARES
1A União Europeia, de há uns anos para cá, tem vindo a olhar para a República Popular da China com grande simpatia e admiração. O crescimento económico que têm vindo a ter (e que este ano vai começar a baixar), as grandes empresas públicas, sediadas em Xangai e Pequim, fundamentalmente, a riqueza ostensiva em que vivem os gestores e os dirigentes políticos têm deslumbrado governos e empresários europeus. Daí que, uns e outros, tenham vindo a multiplicar as viagens de negócios ao Império do Meio e a abrir as suas economias ao investimento chinês, com bastante imprudência, diga-se.
Esquecem-se de que a China - apesar de ser hoje a segunda economia mundial - continua a ter um regime totalitário, puro e duro. E, excluída a Coreia do Norte, por enquanto não tem tido relações muito amigáveis com os seus vizinhos asiáticos, como o Japão, o Vietname, a Índia e mesmo Taiwan.
Por mim, que tenho vindo a observar com atenção a interessante e original evolução da China, pelo menos desde Tiananmen, sempre considerei que o cocktail entre um regime comunista dogmático, reconhecidamente duro, e uma economia neoliberal de capitalismo selvagem não pode - em princípio - dar nada de bom. As duas ideologias, o marxismo e o neoliberalismo, estão ambas em decadência. Mais o marxismo leninista do que o capitalismo de casino, é certo. Mas lá chegará, com pouca distância, o desgaste e a inevitável destruição de ambos. É uma questão de tempo.
Não ignoro que a audácia e habilidade política de Deng Xiaoping, mais ou menos contemporâneas da morte de Mao Tsé-tung e do colapso do comunismo da URSS, levou a um desenvolvimento enorme da China, no plano do Estado totalitário, todo-poderoso, à custa de uma sociedade ultraempobrecida, com destaque para os já pobres, principalmente rurais, e a classe média. Com algumas exceções nas grandes cidades.
Agora a sociedade em geral está a dar mostras de algum descontentamento. Porquê? Porque a China parece não escapar à crise económico-financeira global. A América do Norte, à qual comprou tantos dólares, com a intenção de a pôr de joelhos, fabrica os dólares que entende, e para a China a abundância de dólares começa a ser uma dor de cabeça... Quem tal diria?
Recentemente, surgiu a notícia de que Bo Xilai, líder da fação esquerdista do Partido Comunista Chinês, foi afastado do poder, embora tenha renunciado à luta de classes, peça essencial do comunismo. Ou seja, mais um golpe no marxismo em favor do neoliberalismo. O modelo de crescimento chinês assenta, por enquanto, essencialmente, na mão de obra barata. Há uma nova geração que teme a corrupção crescente, as tremendas desigualdades sociais e as revoltas decorrentes, que parecem preocupar o atual vice-presidente da China, Xi Jinping.
A China tornou-se indiscutivelmente uma grande potência. Mas tem problemas internos dificílimos de controlar. Veremos como a crise global económico-financeira vai evoluir na China. E a que medidas vai obrigar. Talvez os anos pacíficos que tem vivido possam vir a ser socialmente muito incómodos...
2A União Europeia continua à derivaO tempo passa com uma rapidez incrível, pelo menos para mim, e os líderes europeus, sobretudo os da Zona Euro, continuam incapazes de encontrar soluções para a crise global que aflige todos os Estados membros, mesmo os que se julgam impunes, como a Alemanha. Ora, não são, como se tem visto. Agora, a surpresa das surpresas foi Chipre. Segundo dizem os tecnocratas que comandam a Europa, Chipre disputa com Portugal a liderança do grupo de países com mais alta probabilidade de incumprimento dos juros da dívida. Mas a famigerada agência de rating Moody's já começou a atacar Chipre, dizendo que vai seguir a Grécia...
Por outro lado, a Irlanda, até agora tão bem comportada, quer adiar o pagamento de 3,1 mil milhões de euros para 2025. Será que o BCE vai consentir?
Nesta semana, os ministros das Finanças da Zona Euro vão reunir--se, em Bruxelas, para reforçar e fundir o FEEF (Fundo Europeu de Estabilidade Financeira) e o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), o qual - note-se - só estará activo em julho. Vão discutir migalhas, face às necessidades, como de costume, perdendo tempo e sem coragem de encarar as dificuldades, o que é imprescindível para resolver a crise, como sempre tenho vindo a escrever.
O mundo está, com atenção, a seguir a falta de rumo que a União Europeia tem demonstrado. O aumento do descrédito da Europa tem vindo a acentuar-se, em todos os continentes. Mas a Senhora Merkel e os seus súbditos nas instituições europeias e os líderes dos Estados soberanos, irresponsavelmente, têm medo da Alemanha. É uma situação que lembra 1939, o encontro de Munique, de má memória, quando as chamadas democracias europeias, depois de terem entregado a República Es- panhola ao ditador Franco, ajoelharam perante o nazi-fascismo, julgando que conseguiam a paz. Uma vergonha histórica. Valeu- -nos Winston Churchill, Franklin Roosevelt, De Gaulle e, depois de ser atacado, Estaline, com todas as contradições que os Aliados tinham entre si.
A história não se repete, é certo, mas as grandes causas estão a ser sistematicamente esquecidas e as democracias, em termos europeus, maltratadas. Mau sintoma!
3Falta autocrítica ao GovernoPortugal é um reflexo do que se passa na Europa. Por mais que se queira incriminar o anterior Governo Sócrates - e os partidos do Governo não deixam de o fazer, esquecendo-se de que não são eternos e atrás deles outros virão -, a indubitável verdade é que a crise que nos toca é, no nosso caso, essencialmente europeia, porque a União não soube, até agora, mudar o paradigma do desenvolvimento. Ao contrário do que sucede nos Estados Unidos, onde a economia real começou, lentamente, a crescer e o desemprego a diminuir.
É sabido que, pertencendo à Família Socialista, sempre disse que tenho por Passos Coelho estima pessoal e apreço. Mas isso não me impede de criticar - como é normal em democracia - o atual Chefe do Governo pela sua política fechada e, no plano ideológico, dogmaticamente neoliberal. Política que, no meu modesto parecer, está, infelizmente, a levar o País à descrença, ao empobrecimento e ao desemprego, que tem vindo a crescer avassaladoramente.
A austeridade pela austeridade - esquecendo as pessoas e destruindo deliberadamente o Estado social - está a dar lugar, na opinião pública portuguesa, a um enorme descontentamento e mal-estar que, a continuar, vai ter consequências muito perigosas.
Ser um discípulo fiel da Senhora Merkel - e com orgulho disso - quando a chanceler da Alemanha está, com as suas políticas, a arrastar os Estados europeus - e sobretudo a opinião pública europeia - para uma profunda desconfiança, relativamente à Alemanha, não é uma boa credencial para um primeiro-ministro de Portugal. Duas guerras mundiais, no século passado, ambas desencadeadas pela Alemanha, apesar dos anos pacíficos e de bem-estar que a Europa viveu, desde o pós-guerra, incluindo a unificação da Alemanha, graças à Comunidade Europeia, não é coisa que se esqueça facilmente. Por isso, seria bom, em termos europeus, para Portugal, que o primeiro-ministro começasse a tomar as suas distâncias relativamente à chanceler alemã, vinda e formada, não o esqueçamos, na Europa de Leste.
É urgente que o Governo português não esqueça os portugueses, sobretudo os mais pobres e os que ainda não são, mas estão a caminho de o ser. Os desempregados e os precários. Não esqueça os benefícios que todos os dias estão a perder, com o crescente desemprego, as falências em cadeia das empresas pequenas, médias, até algumas grandes e os famigerados cortes.
O Senhor primeiro-ministro, no seu Congresso, falou da "revolução pacífica", que tem vindo a realizar. Com a devida vénia, enganou-se. Trata-se de uma contrarrevolução, como qualquer politicólogo ou sociólogo lhe explicará. Porque o povo não tenha dúvidas, não participa nela nem lhe agrada nada essa "revolução" anunciada. Está profundamente contra, como não podia deixar de ser.
As reformas até agora feitas - os cortes, que atingem principalmente os mais desfavorecidos, as pri-vatizações que o Governo fez já ou pensa fazer, vendendo a qualquer preço o nosso principal património, as nomeações ou a ausência delas, que paralisam os ministérios - não são, realmente, reformas: são contrarreformas, porque o nosso povo não as aprova nem tolera e, pior, está a ficar indignado. Tanto mais que o Governo, no seu conjunto, não tem funcionado bem, como se tem visto.
Não queira, Senhor primeiro- -ministro, com a sua inegável simpatia e coragem (reconheço), passar à história com uma tal responsabilidade. Estamos a caminhar sem critério, com a austeridade - em que só ganham os mercados especulativos - a aumentar a recessão e o desemprego. Para onde caminhamos, já não digo nos próximos anos, mas sim nos meses que ainda faltam a 2012? Para mais com a criminalidade a subir e a surgirem atos, aqui e acolá, de violência...
Pacheco Pereira, insuspeito de ser socialista, num lúcido artigo publicado no sábado, no Público, intitulado: "Está o Estado a tornar--se mais fraco ou mais forte?", escreveu, examinando o processo em causa: "Há o risco real de sairmos com um Estado mais forte, mais poderoso, mais interventivo e mais autoritário." Porque, "para as Finanças não há cidadãos, mas potenciais fugitivos aos impostos". É verdade!
4uma grandeescritora esquecida O Professor Doutor Fernando Pádua, médico ilustre, teve a amabilidade de me convidar para uma cerimónia de homenagem à escritora Maria Archer, que se realiza no Teatro da Trindade na tarde de 29 de março. Aceitei com enorme honra e gosto. Na verdade, conheci pessoalmente Maria Archer - que além de grande escritora era uma mulher muito bonita - quando eu estava a sair da adolescência e me começava a interessar pela literatura e pela política. Acho que foi Piteira Santos que nos apresentou, nos idos de quarenta ou cinquenta, entre os 45 e os 50 anos de Maria Archer, antes do seu exílio para o Brasil, onde permaneceu (mal) até ao 25 de Abril. Infelizmente, não a voltei a ver depois dessa data. Sei que morreu injustamente esquecida e um pouco abandonada em 1982.
Maria Archer foi jornalista e ensaísta, sobre temas africanos, e uma romancista de invulgar qualidade. Nunca li os seus cadernos sobre África. Mas li - e possuo - os livros de que tanto gostei: Eu e Elas, Apontamentos de Romancista, Filosofia de Uma Mulher Moderna, Nada Lhe Será Perdoado, Herança Lusíada, já publicado no Brasil, com um prefácio de Gilberto Freire, e Aristocratas, um dos seus mais interessantes romances. Tenho ainda outros dois livros de Maria Archer que nunca li: África Selvagem e Brasil, Fronteira de África.
As duas grandes temáticas da obra (muito ampla) de Maria Archer são os livros sobre África ex- portuguesa, que quando jovem percorreu em detalhe (por cerca de 14 anos) e os romances sobre a libertação da Mulher, que tanto admirei na juventude e que ainda hoje aprecio.
É com grande reconhecimento que estarei no Trindade, a convite de Fernando Pádua, que só agora soube que é sobrinho dela, para homenagear a escritora, a democrata e a persistente resistente ao salazarismo.

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